Camilla Croso: “A SAME é um momento de articulação, de valorização do trabalho comum e de busca por mudanças concretas para a educação”

2 de maio de 2019

Em entrevista ao programa de rádio Pressenza En la Oreja, Camilla Croso, coordenadora geral da Campanha Latino-Americana pelo Direito à Educação (CLADE), aborda os desafios do direito à educação na região, como a tendência ao lucro no campo educacional e o financiamento educativo insuficiente. Ela também comenta as ações realizadas na América Latina e no Caribe no contexto da Semana de Ação Mundial pela Educação (SAME) 2019.

“Queremos, na América Latina e no Caribe, destacar a importância do direito à educação pensado para o coletivo, para o bem comum. Não é um benefício individual. Embora cada pessoa se enriqueça e cresça, a educação é um direito humano que favorece o bem comum”, afirma.

Leia a entrevista completa:

A CLADE participou da CIES em São Francisco, onde apresentou seu mapeamento sobre tendências de privatização da educação na América Latina e no Caribe. Você poderia comentar algumas das conclusões dessa pesquisa?

Camilla Croso – Participamos da CIES, grande conferência de educação comparada que acontece todos os anos. Participamos de uma mesa sobre a privatização na educação em âmbito regional, com ênfase no Brasil e na Argentina.

Apresentamos as tendências que observamos na região em relação à privatização da educação pública e à privatização na educação pública.

Quando dizemos privatização da educação pública nos referimos a quando pacotes privados começam a entrar na educação pública: venda de currículos, livros, avaliações padronizadas, relatórios. Ou seja, as escolas públicas, mesmo que sejam públicas e gratuitas, carregam dentro de si um grande processo de privatização com essas vendas e os lucros que delas decorrem. A educação pública se torna um mercado profundamente lucrativo em si, especialmente com tudo o que tem a ver com tecnologia e comunicação. De fato, o caso brasileiro se concentrou muito nessa forma de privatização, de venda de pacotes dentro da escola pública.

A outra modalidade é a privatização na educação pública, no sentido de incorporar comportamentos, valores e procedimentos utilizados no setor privado dentro da escola pública. Ou seja, financiamento por resultados, avaliações, rankings, pagamento de salários condicionado a resultados de docentes e estudantes em provas, embora se saiba que o que determina os resultados de estudantes é a condição socioeconômica em que vivem. Esses dois tipos de privatização estão profundamente arraigados aqui na América Latina e no Caribe.

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Há também uma terceira forma de privatização, que foi enfocada particularmente no caso da Argentina: a privatização da própria política. Ou seja, as decisões sobre a política educacional são tomadas sem debate público, e a cidadania não é envolvida. As decisões se dão com a participação de atores do setor privado que ocupam espaços nos governos, muitas vezes de forma orgânica e estrutural.

Isso acontece também no Brasil, com a conformação do que em vários estados e municípios se conhece como pacto ou compromisso, implicando a aprovação de leis e de certas estruturas nas quais o setor privado integra instâncias de decisão sobre as políticas públicas.

Quais são os impactos negativos da privatização da educação?

Camilla Croso – Existem vários problemas relacionados a essas formas de privatização da educação pública. O que acontece é um encolhimento do sistema público de ensino, sob ajustes fiscais por vezes muito radicais. As pessoas perdem seu direito à educação gratuita e têm que pagar para ter acesso à escola – essa é outra forma clássica de privatização, na qual as pessoas realmente pagam pela educação.

Naturalmente, a privatização clássica ocorre com o enfraquecimento do sistema público. Então, temos muitas consequências ruins. Primeiro, ocorre uma segregação e as brechas entre pessoas com mais e menos recursos se ampliam, aprofundando a desigualdade que caracteriza a América Latina e o Caribe.

Quando falamos de privatização, a partir da venda de produtos por empresas do ramo educacional para escolas públicas, há também um problema profundo porque o foco, o objetivo da educação, é mudado e passa a ser o lucro. É muito importante ter em mente que, para que o mercado educacional possa funcionar, é preciso padronizar a educação.

É muito difícil que um mercado educacional elabore um currículo, uma formação docente e uma avaliação projetados para um contexto específico e para sua população. Com a entrada de pacotes de serviços privados na educação pública, há uma grande padronização da educação e, quando isso ocorre, perde-se o que tem a ver com uma educação contextualizada, o que também enfraquece a profissão docente, pois a professora e o professor se tornam instrumentos. A autonomia é totalmente perdida, porque professoras e professores passam a aplicar produtos profundamente padronizados.

>> Baixe o Mapeamento sobre Tendências de Privatização da Educação na América Latina e no Caribe, da CLADE

Isso afeta centralmente o debate pedagógico na educação e tudo o que tenha relação com uma educação para o pensamento, que problematiza, que é dialógica. Se você está em uma aula e faz uma pergunta, e outra pessoa faz outra, cria-se um ambiente de diálogo e espontaneidade que torna a educação profundamente rica e pedagógica. Isso se perde com a privatização e a padronização.

Qual é o objetivo da Semana de Ação Mundial pela Educação 2019?

Camilla Croso – A SAME é uma iniciativa da Campanha Mundial pela Educação (CME), que acontece desde 2003 e que a cada ano mobiliza os seus membros em mais de 100 países. É um momento de luta, de trabalho coletivo e de traçar um horizonte comum, a partir do qual a sociedade civil de todo o mundo se organiza e luta por certas dimensões do direito à educação.

É um momento de articulação, de valorização do coletivo, de valorização do trabalho comum e de busca por mudanças concretas para a educação. Na América Latina e no Caribe, essa mobilização tem como slogan: “Nossa educação, nossos direitos”, pois queremos sempre destacar a importância do direito à educação pensado para o coletivo, para o bem comum. Não é um benefício individual, embora cada pessoa enriqueça e cresça. Muito mais que algo individual, a educação é um direito humano que favorece o bem comum.

Este ano também teremos o Fórum Político de Alto Nível das Nações Unidas, que acontecerá em julho e marcará a primeira revisão mais profunda do cumprimento do Objetivo de Desenvolvimento Sustentável (ODS) de número 4, referente à educação. Será um momento chave para avaliar como está o direito à educação em todo o mundo.

Quais ações são organizadas no contexto do SAME na América Latina e no Caribe?

Camilla Croso – O tema comum da SAME 2019 é muito amplo, de maneira que a sociedade civil em cada país também possa colocar luz e sombra em diferentes demandas, dependendo de seu contexto. Na CLADE, realizaremos uma série de quatro debates virtuais.

A partir do dia 30 de abril, realizaremos diálogos virtuais semanais sobre o estado do direito à educação na América Latina e no Caribe, com a participação dos 16 fóruns nacionais membros da CLADE e pessoas convidadas, com o objetivo de fazer uma avaliação coletiva de como está a educação na região.

No último encontro virtual da série, que acontece no dia 21 de maio, a CLADE lançará um documento muito importante para a rede, intitulado “Educar para a liberdade: Por uma educação emancipadora que garanta direitos”. É um compromisso da CLADE colocar na pauta pública, no debate público, uma reflexão que se torne ação, sobre a educação emancipadora, uma educação que nos libere e nos permita imaginar outros mundos possíveis, que nos permita contrapor os cenários regressivos em que estamos vivendo, uma educação antipatriarcal, que ultrapasse as perspectivas coloniais. É um documento que quer aprofundar a política e a pedagogia da educação que queremos, desse direito pelo qual lutamos há tantos anos.

Leia+ sobre as propostas da CLADE para uma educação emancipadora, baixe materiais relacionados e junte-se à mobilização regional  “Educar para la Libertad”

Em âmbito nacional, em diversos países da região, os membros da CLADE promovem lutas relacionadas a diferentes aspectos do direito humano à educação, por exemplo, a educação com igualdade de gênero, e também celebrando algumas conquistas, como é o caso do Peru, onde o Supremo Tribunal emitiu uma decisão favorável à inclusão da perspectiva de gênero no novo currículo nacional da educação básica.

Em todo o continente, são travadas lutas para impedir retrocessos à igualdade de gênero e ao financiamento educacional, bem como para demandar mais recursos para a educação pública e gratuita, como é o caso do Brasil, onde a SAME se focará em exigir a implementação do Plano Nacional de Educação. Já em El Salvador, a luta é pela aprovação de um projeto de lei que aumente gradativamente a porcentagem do Produto Interno Bruto (PIB) investida em educação pública, até alcançar 6% do PIB. No Chile, há um grande debate contra uma lei que prevê o estabelecimento de “escolas seguras“, numa perspectiva de controlar os estudantes e expulsá-los por atos de violência, o que contraria uma perspectiva emancipadora e democrática da educação (saiba mais sobre o assunto).

Essa perspectiva se refere à securitização da educação, isto é, quando falam de escolas seguras, falam de “estudantes perigosos”, de conter estudantes como se fossem naturalmente perigosos, e essa é uma forma grave de criminalização. Com nosso membro no Chile, estamos trabalhando em um documento que esclarece essa problemática.

Também temos casos como o da Colômbia, onde são realizadas greves e manifestações intensas contra os cortes orçamentários para a educação e o profundo enfraquecimento observado nas universidades públicas do país.

SAME 2019

A Semana de Ação Mundial pela Educação (SAME) é uma mobilização internacional que conta com a participação de ativistas e comunidades educativas de mais de 100 países em todo o mundo. Na América Latina e no Caribe, atividades e diálogos são promovidos para analisar e discutir o estado do direito à educação em um momento chave: em julho deste ano, será feita a revisão do Objetivo de Desenvolvimento Sustentável (ODS) de número 4, sobre educação, nas Nações Unidas.