Foto: Simenon

Ricardo Cuenca: “Devemos apresentar com dados os resultados negativos do lucro na educação”

21 de janeiro de 2020

Por: Thais Iervolino

Em entrevista à CLADE, o pesquisador e professor da Universidade Peruana Cayetano Heredia, Ricardo Cuenca, analisa a privatização e o lucro no sistema educacional peruano

Ricardo Cuenca: “Não existe regulamentação direta do setor privado, mas a regulamentação está concentrada no público e o privado pode avançar com as leis do mercado. Foto: Instituto de Estudos Peruanos.

“O nível de mercantilização da educação no Peru é mais ou menos especial entre os outros países. Primeiro, porque não há subsídio do Estado para o setor privado. Ou seja, o sistema é puramente privado e as famílias não recebem subsídios, sem bônus”, analisa o pesquisador do Instituto de Estudos Peruanos (IEP) e professor principal do departamento de educação da Universidade Peruana Cayetano Heredia (UPCH), Ricardo Cuenca, em entrevista à Campanha Latino-Americana pelo Direito à Educação (CLADE).

Cuenca aborda as principais características da educação peruana em relação às leis nacionais que corroboram a privatização e o lucro desse direito. Leia o diálogo abaixo.


Existe alguma legislação no Peru que aborde especificamente a questão da privatização educacional e do lucro na educação?

Ricardo Cuenca: Sim, existe o Decreto Legislativo 882, publicado em 1996. Esse decreto efetivamente permite lucro na educação, tanto na educação básica quanto na educação superior.


Em geral, como a legislação peruana aborda o assunto?

Ricardo Cuenca: Em geral, as leis são ambíguas, exceto o decreto 882, que promove o lucro. O que elas fazem é mostrar algumas facilidades para a existência de um sistema de ensino privado. Digamos que as leis, em geral, reconheçam a oferta privada, embora não diretamente o lucro.

Especialmente no caso do ensino superior, o que temos é uma diversidade de ofertas privadas: existe a oferta privada sem fins lucrativos e a oferta privada que obtém lucro.


Qual é a situação no Peru em relação à mercantilização da educação?

Ricardo Cuenca: O nível de mercantilização da educação no Peru é mais ou menos especial entre os outros países. Primeiro, porque não há subsídio do Estado para o setor privado. Ou seja, o sistema é puramente privado e as famílias não recebem nenhum subsídio público, nenhum bônus, como no caso chileno, mas o que o governo faz é apenas estimular a existência de um sistema paralelo ao sistema público.

O que acontece é que não existe regulamentação direta do setor privado, mas a regulamentação está concentrada no público e o privado pode avançar com as leis do mercado, por exemplo.

Existem opções que estão sendo adotadas nos novos regulamentos, que ainda não foram aprovados, para regulamentar a oferta privada nas escolas, e o que se segue será o regulamento da oferta privada nas universidades. Mas são coisas novas, que ainda não foram implementadas.


Como foram desenvolvidas as leis que se referem à educação privada no país?

Ricardo Cuenca:A elaboração da legislação sobre o ensino superior concentrou-se mais ou menos em um trabalho conjunto entre o governo, as federações privadas e os sindicatos privados das universidades.

Na educação básica, isso é menos fácil de acontecer, mas algumas empresas que, por exemplo, possuem redes de escolas e queriam entrar no debate também participaram das discussões, para não afetar seus próprios interesses.

Assim como existem essas grandes cadeias ou consórcios de escolas particulares, também existem escolas particulares muito pequenas e de baixo custo, que são maioria no país e não tiveram participação direta nos debates legislativos.

Embora não existam estudos muito claros, há muitas evidências, eles ainda não estão bem ordenados, de que muitas dessas pequenas escolas são de propriedade de professores que também são diretores.

O caso peruano é particular em termos de ser mais honesto com seu sistema, o que não significa que esteja bem, mas pelo menos é mais transparente no assunto. Se diz: “se você vai lucrar, você tem essas regras e ganhará dinheiro com essas regras”


Existem lacunas na legislação atual que permitam lucro na educação ou estimulem práticas lucrativas nesse campo?

Ricardo Cuenca: Não há muitas, mas não porque elas não existem, mas porque existem esses vários caminhos que a oferta privada têm para funcionar. Então, provedores privados claramente lucrativos são regulamentados como empresas. Portanto, a diferença não é tão grande quanto a das organizações privadas sem fins lucrativos.

O caso peruano é particular em termos de ser mais honesto com seu sistema, o que não significa que esteja bem, mas pelo menos é mais transparente no assunto. Se diz: “se você vai lucrar, você tem essas regras e ganhará dinheiro com essas regras”.


Em relação ao quadro legislativo em vigor no seu país, há algum ajuste que deve ser feito para consolidar a educação como um direito humano fundamental? 

Ricardo Cuenca: Acredito que há uma necessidade de maior regulamentação, especialmente de escolas particulares de baixo custo, uma regulamentação fundamentalmente de qualidade, porque o que estamos vendo é que as matrículas em escolas particulares, especialmente nas escolas primárias, têm crescido. Até recentemente, vimos que isso só acontecia nas grandes cidades, mas acabei de concluir um estudo no qual é mostrado que, nas cidades pequenas e médias, o nível de matrículas no setor privado está aumentando.

O que estão fazendo é dizer: “Deixe-me trabalhar porque o Estado não está presente”, o que é uma armadilha.

Portanto, se não tivermos nenhum tipo de regulamentação, teremos problemas. A qualidade do emprego dos professores que atuam no setor privado é muito pior do que no serviço público e isso resulta, entre outras coisas, em uma baixa qualidade de serviço.

O que estão fazendo é dizer: “Deixe-me trabalhar porque o Estado não está presente”, o que é uma armadilha. Então, quando se trata de regulamentar melhor a oferta privada, com seus próprios regulamentos, o Estado pode oferecer a escola pública de outra maneira.

Eu acho que essa combinação é importante, porque parece impossível o suprimento privado no Peru desaparecer neste momento. O nível de inscrição no setor privado é grande e o Estado não tem capacidade para absorver toda a demanda. Existe o problema e é preciso pensar em como resolvê-lo.


Que recomendações você daria às organizações da sociedade civil que agem contra a mercantilização da educação e em defesa da educação pública e gratuita para todas e todos?

Embora tenhamos discursos muito mais poderosos, não se trata apenas de dizer “sou contra a comercialização”, mas devemos apresentar com dados os resultados negativos do lucro na educação.

Ricardo Cuenca: Eu recomendo reivindicar alterações legislativas e também acumular todas as informações que existem. Hoje existe uma grande heterogeneidade de qualidade na oferta privada e, como às vezes a oferta pública é melhor que a privada, é necessário reunir o máximo de informações possível para validar os argumentos contra a mercantilização. Embora tenhamos discursos muito mais poderosos, não se trata apenas de dizer “sou contra a comercialização”, mas devemos apresentar com dados os resultados negativos do lucro na educação.

Portanto, é importante desenvolver estudos sobre qualidade, oferta, segregação escolar, estudos sobre desigualdades educacionais que analisem a relação público-privada na educação e que permitam reunir bons argumentos que possam ser transformados em ações de lobby para modificar a lei.


Você tem algo a mais para acrescentar?

Ricardo Cuenca:Parece-me que o exercício de olhar para a lei, juntamente com a pesquisa de base, é uma questão fundamental porque, se apenas olharmos para a legislação, não tenho certeza de que possamos avançar.

O melhor exemplo é o do Peru, onde a ótima ideia de elaborar uma legislação progressiva, com a participação de pais e mães, e de toda a sociedade, no debate sobre educação, acabou sendo o caminho do movimento conservador “Não se meta com meus filhos”, que entrou com uma ação contra o Estado peruano pela retirada da abordagem de gênero do currículo escolar. O Tribunal Constitucional negou a queixa, mas, se tivesse sido apenas uma questão legislativa, poderíamos ter tido um grande problema.