“Em diversos contextos, os espaços educativos são o único lugar seguro para as crianças”
15 de abril de 2020
Por: Fabíola Munhoz
Em entrevista à CLADE, Guadalupe Ramos Ponce, advogada e feminista, analisa o impacto do isolamento social no atual momento de pandemia COVID-19 sobre as meninas, jovens e mulheres, e aborda a importância da educação nesse contexto
“A preocupação com a pandemia do COVID-19 e os desafios na saúde vêm acompanhados de outros tipos de desafios que impactam de maneira direta a vida das mulheres”, afirma Guadalupe Ramos Ponce, advogada, feminista e coordenadora do Comitê da América Latina e do Caribe para a Defesa dos Direitos das Mulheres (CLADEM) em Jalisco (México). Segundo a entrevistada, a violência e o desemprego são algumas das consequências da crise para as mulheres.
Neste diálogo, também se discutiu a importância de garantir o direito à educação, sem o qual os impactos negativos para as meninas, jovens e mulheres poderão ser mais fortes. “A saída temporária do sistema educativo para as meninas e jovens pode significar o abandono definitivo [dos estudos], e eventualmente resultar no aumento do casamento infantil forçado e no aumento da gravidez em meninas e jovens, afetando profundamente a continuidade de seu projeto de vida”.
Leia a entrevista na íntegra:
Quais são os impactos da atual pandemia para as meninas e mulheres, especialmente no que diz respeito aos direitos humanos, como educação, saúde, trabalho, proteção social e outros?
Guadalupe Ramos – Esta crise pandêmica mostra as desigualdades e violências estruturais, em especial sobre as mulheres e as populações em situação de risco e vulnerabilidade na América Latina e no Caribe.
É preocupante que, em vários países, tenham sido decretados estados de emergência ou de exceção democrática, conferindo poderes especiais aos governos, que podem assim violar os direitos humanos e ter um poder especial sobre a população em geral e as mulheres em particular, especialmente nos seguintes direitos apontados pela Rede de Saúde das Mulheres Latino-Americanas e do Caribe.
“A saída temporária do sistema educativo para as meninas e jovens pode significar o abandono definitivo [dos estudos], e eventualmente resultar no aumento do casamento infantil forçado e no aumento da gravidez em meninas e jovens, afetando profundamente a continuidade de seu projeto de vida”
Em primeiro lugar, no que diz respeito à saúde sexual e reprodutiva, deve ser prestada especial atenção na prevenção da mortalidade materna, no acesso universal a métodos contraceptivos modernos, em serviços de aborto legal e seguro, no tratamento de doenças sexualmente transmissíveis, incluindo os anti-retrovirais, já por si negligenciados nos sistemas de saúde da região, antes do aparecimento da pandemia.
Sobre o direito à educação, a rede alerta que a saída temporária do sistema educativo para as meninas e os jovens pode significar o abandono definitivo [dos estudos]e eventualmente levar ao aumento do casamento infantil forçado e ao aumento da gravidez em meninas e jovens, afetando profundamente a continuidade de seu projeto de vida. Adicionalmente, em diversos contextos, os espaços educativos resultam ser o único lugar seguro para as crianças.
A Rede assinala também que a crise de saúde representa para as mulheres uma sobrecarga invisível, que significa se manter informada, prover o cuidado, cumprir com seus deveres de trabalhos, ajudar com as tarefas educativas de suas filhas e filhos, a obrigatória autocontenção, a impossibilidade de parar ou ter um espaço para o descanso, entre outras cargas historicamente associadas aos papéis preestabelecidos entre mulheres e homens.
A situação acima referida é agravada pela situação de isolamento, uma vez que as mulheres tendem em geral a interagir socialmente e a se relacionar com outras pessoas. Neste sentido, o aumento das violências contra as meninas e mulheres aumenta com as medidas de isolamento que colocam em risco a vida e a saúde das mulheres e das meninas, reafirmando que os espaços íntimos podem se tornar os mais inseguros. As situações de violência estrutural se intensificam no isolamento, aumentando a violência física, sexual, psicológica e, portanto, o feminicídio.
Como os movimentos feministas estão se organizando para contribuir com a superação desta crise, numa perspectiva de igualdade de género?
Guadalupe Ramos – As redes feministas na América Latina e no Caribe, como CLADEM e outras, se posicionaram ao redor do tema da pandemia COVID-19 e da maneira como esta crise na saúde está afetando especialmente as mulheres.
Foi de vital importância colocar na discussão dois temas fundamentais. O primeiro é a violência contra as mulheres e o modo como estas medidas e o isolamento social afetam o aumento destas violências e dos feminicídios.
Como assinala a Secretaria de Governo no México, durante a implementação da quarentena, aumentou em 30% o número de pedidos de socorro por violência doméstica, pelo qual devem estabelecer protocolos e medidas imediatas para salvaguardar a vida das meninas e mulheres durante o isolamento social que obriga a permanecer sob o mesmo teto dos seus agressores.
“A preocupação com a pandemia COVID-19 e os desafios na saúde vêm acompanhados de outros tipos de desafios que impactam de maneira direta a vida das mulheres”
A segunda questão é sobre as medidas econômicas que foram tomadas e que não foram realizadas numa perspectiva de gênero. Por conseguinte, não atenderam às desigualdades estruturais que se vivem na América Latina e no Caribe. Como assinala a ONU Mulheres, a redução da atividade econômica afeta em primeira instância as trabalhadoras informais, que perdem seu sustento de forma quase imediata, sem nenhuma rede [de apoio] ou possibilidade de substituir o ingresso diário em geral.
Na América Latina e no Caribe, são 126 milhões de mulheres que dependem de seu trabalho informal. A recessão econômica resultante da crise do coronavírus tornará mais difícil para estas mulheres conseguirem emprego e os governos não tomaram as medidas necessárias para resolver os efeitos econômicos da pandemia em termos de género.
A preocupação com a pandemia COVID-19 e os desafios em matéria de saúde vêm acompanhados de outros tipos de desafios que impactam de forma direta a vida das mulheres.
Nestes dias de reclusão em casa, as companheiras da CLADEM fizeram uma reflexão profunda sobre o significado da pandemia em cada um de nossos países, e a maneira com que cada governo tem enfrentado a situação. Uma das conclusões abordadas é que as soluções não têm perspectiva de género e não está diferenciado o impacto que uma pandemia desta natureza tem na vida e no corpo das mulheres.
A colega Liyana Pavón, da República Dominicana, realizou as seguintes análises sobre os desafios de gênero que estão se agravando com o COVID-19. Em primeiro lugar, o fechamento massivo de escolas afecta principalmente às mulheres que são responsáveis dos cuidados de crianças.
Em segundo lugar, os serviços fortemente feminizados como as babás, empregadas domésticas, cabeleireiras, entre outras, são os mais afetados, pois não podem fazer o seu trabalho à distância. Em terceiro lugar, a área de saúde é composta maioritariamente por mulheres, 70% em nível global, que estão na primeira linha de luta contra o COVID-19.
Em quarto lugar, a maior parte das tarefas de assistência remunerada e não remunerada a idosos é realizada por mulheres, pelo que têm maiores riscos de adoecer e de ter os seus próprios empregos não remunerados.
Em quinto lugar, constatamos também que as mulheres apresentam maior condição de informalidade no trabalho do que os homens e, nestas condições, carecem de proteção social, o que as leva a se colocar em risco e em situação de vulnerabilidade.
Em sexto lugar, as mulheres vítimas de violência doméstica estão isoladas e presas com os seus infratores, o que aumenta os riscos de agressões e de feminicídio.
Em outros âmbitos, também descobrimos que outras redes se pronunciaram, como a Rede Feminista G10 X Jalisco, também reflete sobre esta situação e faz um apelo ao governo do Estado, ao empresariado, aos que exercem posições de liderança e aos que têm possibilidade de dar apoio, para que sejam solidários com aqueles que por questões de desigualdade estrutural e por ter que viver em condições precárias não podem estar em quarentena por não contar com reservas ou poupança que permitam deixar de trabalhar porque vivem com o dinheiro do dia. Especialmente com as mulheres, que realizam uma jornada de trabalho triplo em termos de cuidados não remunerados em comparação com os homens.
Assinala também que o nível de ocupação informal das mulheres é superior ao trabalho dos homens, em todo México, representando 50%. Em particular em Jalisco, 52% das mulheres que produzem é no setor informal, pelo que não tem uma renda fixa e não tem acesso a prestações trabalhistas de segurança social nem a serviços médicos para elas e para suas famílias.
A rede salienta também que em tempos de crise e recessão econômica decorrentes de estereótipos de género, são precisamente as mulheres que sofrem o maior número de demissões, sem considerar que esses empregos são precisamente a única forma de rendimento em famílias monoparentais.
Que medidas devem ser exigidas dos Estados e da comunidade internacional para proteger e garantir os direitos das meninas e mulheres no atual contexto, no âmbito educativo e para além dele?
Guadalupe Ramos – No contexto atual, é necessário que qualquer medida tomada pelos Estados assegure e garanta a proteção dos direitos humanos em geral da população, e, em particular, das meninas e mulheres, para ter acesso a uma vida livre de violências e para que seja garantido o direito à saúde, não como um direito enunciativo, mas de maneira integral. isso inclui a saúde sexual e reprodutiva e, a garantia do direito à educação para crianças e jovens que são afetadas(os) por não existirem plataformas educativas que respondam pelas desigualdades estruturais na região. Ou seja, a resposta dos Estados ao confinamento de crianças e jovens em idade escolar foi a promoção da educação por tecnológica que, em muitas ocasiões, estão fora do alcance da maioria da população.
“Os Estados devem fazer o máximo de esforço para garantir o acesso universal e sem discriminação à educação de crianças, adolescentes e pessoas adultas”
A UNICEF e a UNESCO salientam que o impacto desta emergência sanitária pode ser ainda mais grave se a educação for interrompida. Indicam que os Estados devem fazer o máximo de esforço possível para garantir o acesso universal e não discriminatório à educação de crianças, adolescentes e pessoas adultas que estudam, tal como estabelecido nos instrumentos internacionais de direitos humanos.
É fundamental ouvir as recomendações da UNICEF e da UNESCO, que indicam:
Em primeiro lugar, é necessário que os professores tenham um contato regular com estudantes e as suas famílias de forma remota, a fim de favorecer a coesão social, prevenir a violência intrafamiliar e assegurar a continuidade da aprendizagem.
Em segundo lugar, pedir aos tomadores e tomadoras de decisões das diferentes funções do Estado aumentar a conectividade e o acesso à comunicação de professores para que possam continuar com o seu trabalho.
Em terceiro lugar, exigir medidas que incentivem os meios de comunicação social públicos comunitários e locais a difundir conteúdos educativos de qualidade, segundo os princípios da educação em situações de emergência.
“É importante que na emergência atual fiquemos todas as pessoas envolvidas nos processos educativos – as famílias, professoras, professores, empresas e a sociedade em seu conjunto – para somar de forma ativa aos esforços e para que, nesta emergência não se suspenda a educação, pelo contrário, se consolide a partir de uma ação comunitária”.
Em quarto lugar, os professores e as professoras constituem um apoio fundamental para as famílias em momentos de emergência. Através desses profissionais, não só é garantido o direito à educação das crianças e dos jovens, as famílias também podem receber conselhos concretos e simples sobre atividades que ajudam a reduzir os níveis de stress, angústia e violência. Por isso, é crucial manter a sua estabilidade no trabalho e fornecer a eles as ferramentas necessárias para efetuar o seu trabalho.
Em quinto lugar, a UNICEF e a UNESCO apoiam os Ministérios da Educação na adaptação da educação ao contexto atual através de plataformas virtuais, conteúdos educativos para televisão, rádio, redes sociais, e por sua vez com o acompanhamento pedagógico e psicossocial através de chamadas telefônicas semanais às famílias.
É importante que na emergência atual fiquemos todas as pessoas envolvidas nos processos educativos – as famílias, professoras, professores, empresas e a sociedade em seu conjunto – para somar de forma ativa aos esforços e para que, nesta emergência não se suspenda a educação, pelo contrário, se consolide a partir de uma ação comunitária.
O contexto de pandemia agrava os riscos de discriminação e violência contra mulheres e meninas? Por que isso acontece e como lidar com a situação?
Guadalupe Ramos – Sem dúvida, um dos maiores desafios que enfrentamos com a pandemia é o aumento dos atos de discriminação, primeiro com as pessoas que sofrem o COVID-19. Por incrível que pareça, o próprio pessoal médico, particularmente o pessoal de enfermagem, na sua maioria mulheres, sofreu atos de discriminação e violência, por pessoas que os consideram possíveis focos de infecção.
A ignorância caminha de mãos dadas com a discriminação e, sem dúvida, deve sofrer sanção. Mas também se adverte sobre a discriminação nas medidas tomadas pelos governos a respeito do chamado isolamento social, através de um discurso que faz com que as pessoas sejam responsáveis por adoecer e morrer, por não tomarem as medidas de isolamento ou não ficarem em casa. É como dizer que se se contagiam é porque querem, quando na realidade são pessoas que vivem com renda do dia e não foram implementadas medidas de precaução e atenção econômica para sua sobrevivência.
“O coronavírus pode ser desastroso para as vítimas de violência doméstica. Para muitas pessoas, o mundo externo pode ser muito mais seguro do que a sua própria casa”
A América Latina e o Caribe têm desigualdades estruturais. Isso significa que muitas pessoas tenham que sair de casa porque vivem praticamente o dia a dia com trabalhos informais, e não podem portanto obedecer a medida da sã distância ou de “fique em casa”. Essas medidas, embora boas, acabam sendo um privilégio de classe.
Os governos têm planos de contingência para essas pessoas? É conhecida a quantidade de chefes de família que terão que deixar suas filhas e filhos sozinhas(os) em casa enquanto saem forçosamente para trabalhar? Qual é o plano de contingência para atender às violências de gênero que surgiram em casa, com o fechamento da quarentena?
O coronavírus pode ser desastroso para as vítimas de violência doméstica. Para muitas pessoas, o mundo exterior pode ser muito mais seguro do que a sua própria casa. Quando um casal violento não pode sair e se frustra, as probabilidades de que se exerça violência aumentam, por isso é importante que os Estados estabeleçam protocolos, albergues e medidas de ação imediata para tratar os casos de discriminação e violência contra toda a população, especialmente contra as meninas e as mulheres.
Também, é claro, devem ser atendidas as populações em situação de vulnerabilidade, especialmente a população migrante, pessoas em situação de rua, trabalhadoras sexuais, mulheres trans e todas as pessoas que vivem permanentemente nas ruas. É necessária a implementação de políticas públicas de impacto diferenciado, e com um controle cidadão através de meios digitais para prevenir e alertar sobre eventuais violações aos direitos humanos.