O reconhecimento dos direitos da primeira infância vive uma disputa ideológica, metodológica e institucional

22 de novembro de 2019

Por: Thais Iervolino

Para comemorar os 30 anos da Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança, especialistas analisaram os desafios e as propostas para a garantia do direito humano à educação de meninas e meninos de 0 a 8 anos na América Latina e no Caribe. Observou-se que as políticas de educação e assistência para esta etapa da vida são desiguais e fragmentadas.

Na última quarta-feira, 20 de novembro, celebramos os 30 anos da Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança (CDC). Adotado em 1989, esse tratado internacional reúne o maior número de ratificações do mundo – 196 estados membros da ONU – e foi o primeiro a reconhecer as crianças como sujeitos da lei, transformando as pessoas adultas em sujeitos de responsabilidade.

Nesse contexto, a CLADE, a Organização Mundial para a Educação Pré-Escolar (OMEP) e a Fundação Educación y Cooperación (EDUCO) realizaram, em 19 de novembro, o diálogo virtual “30 anos da Convenção sobre os Direitos da Criança: Primeira Infância em diálogo”.

Com o objetivo de discutir e refletir sobre os desafios e as propostas para a garantia do direito humano à educação e ao cuidado na primeira infância na América Latina e no Caribe, esse diálogo foi o primeiro de uma série de reuniões virtuais que abordarão esta questão, organizados pela CLADE, a OMEP e a EDUCO. O evento também marcou o lançamento da campanha “Direitos desde o início: educação e cuidado na primeira infância”.

“O que queremos com este conjunto de seminários on-line é conversar com autoridades de diferentes países da América Latina e do Caribe. Convidamos autoridades dos Ministérios da Educação, dos parlamentos e de institutos especializados em questões da infância a participar, justamente para pensarmos, na prática, em como dar um impulso maior para a realização do direito humano à educação infantil”, disse Camilla Croso, coordenadora geral da CLADE, durante o diálogo.

Ao lado de Camilla Croso, participaram do evento, compartilhando dados, recomendações e análises sobre a situação da educação e da primeira infância na região: Adrian Rozengardt, especialista em políticas públicas para a primeira infância na Argentina; Mauricio Castillo, da EDUCO, e Mercedes Mayol Lassalle, vice-presidente regional para América Latina da OMEP, encarregada de moderar o diálogo. Víctor Giorgi, diretor geral do Instituto Interamericano de Crianças, Crianças e Adolescentes, não pôde participar ao vivo, mas enviou um vídeo com suas análises e contribuições sobre o assunto.

Gravação do diálogo virtual:

 

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Disputa, reconhecimento e tensões

Para o especialista Adrián Rozengardt, o mundo dos cuidados e educação na primeira infância é muito complexo e ainda está em construção, sendo um campo disputado. “Não é um assunto em que se tenha apenas uma maneira de se aproximar ou olhar. Há uma disputa ideológica, uma disputa metodológica e uma disputa institucional”, afirmou.

Segundo o especialista, ainda estamos no processo de reconhecer a primeira infância e tudo o que está envolvido à essa etapa. “Todos os processos de reconhecimento de campos específicos, do social, são atravessados por tensões e complexidades. (…) Tivemos que viver duas guerras mundiais e muitos outros conflitos mais localizados para descobrir os direitos de homens e mulheres”, explicou.

A adoção da Convenção sobre os Direitos da Criança em 1989 foi outro momento tenso, segundo Adrian Rozengardt. “Foi um processo de reconhecimento que ocorreu no âmbito da expansão da globalização da economia e do estabelecimento do modelo neoliberal em todo o planeta. Reconhecemos direitos, mas, ao mesmo tempo, perdemos a capacidade de acessar esses direitos devido à concentração da riqueza, que ocorre em certos setores da sociedade”.

Adrián Rozengardt:”Embora o surgimento de serviços de educação e cuidados infantis tenha tornado a questão dos pais um problema de política pública, permanecem tensões importantes”

Ele acrescentou que uma tensão que atravessa o mundo dos cuidados e da educação na primeira infância é a disputa entre os âmbitos privado, familiar e estatal. “Embora o surgimento de serviços de educação e cuidados infantis tenha tornado a questão dos pais um problema de política pública, ainda existem tensões significativas, por exemplo, que têm a ver precisamente com o papel do Estado, com sua capacidade de redistribuir a riqueza para sustentar o que a família tinha que resolver antes, e que agora a sociedade deve resolver. Por exemplo, também – e é muito atual – a questão da religiosidade, das crenças , a questão das culturas, que estão passando pela disputa entre o mundo privado e o mundo público”, afirmou.


Heterogeneidade, fragmentação e desigualdade

Segundo Camilla Croso, a educação e os cuidados na primeira infância na América Latina e no Caribe são fragmentados e dispersos. “Existem abordagens diferentes, dependendo da idade, de zero a três anos, e depois no estágio obrigatório – de quatro a seis anos – e no estágio seguinte: a educação primária. Há uma fragmentação de idade”, disse. Para ela, é necessário que as políticas de educação e cuidado na primeira infância sigam a mesma lógica e tenham coerência entre si. “Isso implica uma abordagem abrangente da primeira infância, do nascimento aos oito anos, enfatizando seu valor inerente”, explicou.

Para Adrian, as experiências de educação e cuidados na primeira infância na América Latina devem ser analisadas sob três esferas: heterogeneidade, fragmentação e desigualdade. “Esse universo é basicamente heterogêneo, porque coexistem milhares e milhares de experiências em toda a América Latina. São formatos vinculados ao sistema de educação formal, escolarizado e não escolarizado, experiências vinculadas a iniciativas não formais. Essa heterogeneidade é essencial para entender a complexidade deste mundo”, enfatizou.

Adrián Rozengardt: “Devemos reconhecer que a heterogeneidade é boa, que é valiosa porque decorre da demanda e da necessidade de diferentes momentos da história, que foram consolidados em experiências muito ricas”

Por outro lado, ele também apontou que o governo desse mundo heterogêneo também está muito fragmentado. “Está fragmentado do ponto de vista da política, do normativo, dos responsáveis pela aplicação da política, da metodologia, das formas de construção das áreas onde ocorrem essas trocas entre crianças e adultos, do olhar sobre as famílias. Há uma fragmentação que ocorre dentro dos países e na região”.

Acrescentou que outra tensão nesse campo é a visão segmentada que propõe apenas políticas voltadas para os setores vulneráveis, ou com menos acesso às crianças e seus direitos. “Isso acaba criando políticas ruins para os pobres e quebra a visão universal, que a sociedade vem construindo ao longo dos anos, para superar modelos focados e adotar modelos universalistas, de acesso igual para toda a sociedade”, afirmou.

Também explicou que esse mundo heterogêneo e fragmentado de experiências de educação e assistência na primeira infância é atravessado pela desigualdade de qualidade, cobertura e financiamento. “Se algo diferencia a América Latina de outras regiões do planeta é sua profunda desigualdade, também reproduzida no mundo da primeira infância. Devemos reconhecer que a heterogeneidade é boa, que é valiosa porque decorre da demanda e da necessidade de diferentes momentos da história, que foram consolidados em experiências muito ricas. A fragmentação deve ser limitada ao máximo, precisamos tentar resolvê-la, mas isto também depende de modelos estatais, políticas setoriais, disputas orçamentárias e, é claro, a desigualdade deve ser significativamente reduzida”, afirmou.   


Visão instrumental: presente x futuro

Durante sua apresentação, Camilla Croso também criticou as políticas da primeira infância que pensam apenas no futuro. “De uma maneira geral, quando analisamos as estruturas internacionais e as políticas que emanam de um debate mais global, observamos que muitas vezes a educação infantil é criada apenas como uma preparação para o futuro. Essa perspectiva que cada estágio prepara para o futuro nos parece fundamentalmente errada e não está de acordo com a perspectiva da educação como um direito humano. A educação como direito humano tem um valor em si mesma em cada uma das etapas, para começar com a educação infantil”, destacou.

Camilla Croso: “Observamos que muitas vezes a educação infantil é criada apenas como uma preparação para o futuro. Essa perspectiva que cada estágio prepara para o futuro nos parece fundamentalmente errada

Adrian também se opôs à visão instrumental da primeira infância. “Está claro que há uma forte tendência aos critérios meritocráticos, de preparar a primeira infância para a vida adulta, a famosa janela de oportunidades que é ‘agora ou nunca’, com capital social, que está por trás de todo esse discurso. O surgimento com uma força desproporcional da neurociência, quando existem muitas ciências que contribuem para a identificação do conhecimento da primeira infância, incluindo aquelas que dizem que é preciso investir na primeira infância pela taxa de retorno, ou para que, quando sejam adultas, não roubem, não se droguem… Essa instrumentalidade da infância prejudica a própria experiência que significa viver os primeiros anos de vida, sem nenhuma intencionalidade subsequente, sem mediação”, afirmou.


Avaliação padronizada

A avaliação dos programas e políticas de educação infantil também foi um tema de destaque no diálogo virtual. Segundo Camilla Croso, a avaliação deve respeitar as características da primeira infância e os objetivos do direito humano à educação, conforme expresso na Convenção sobre os Direitos da Criança.

“Outra tendência que estamos observando em nível regional e global é que os testes padronizados que existem no ensino fundamental, médio e superior começam a ser aplicados desde a infância. Isso nos preocupa profundamente, porque vai no sentido contrário do que parece fundamental para nós, que é respeitar a infância, reconhecer e respeitar as características dessa época, sublinhando a importância da brincadeira, da cultura e da criatividade que são expressadas na Convenção sobre os Direitos da Criança, e que de fato devem influenciar todas as outras etapas educacionais”, enfatizou.


Vídeo: O reconhecimento das crianças pequenas como sujeitos de direito

 

Durante o diálogo virtual, foi apresentado um vídeo com análises, contribuições e recomendações de Victor Giorgi. Veja abaixo:

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Desafios: cobertura e qualidade

No final do diálogo virtual, Juan Mauricio chamou a atenção para os desafios atuais dos cuidados e educação na primeira infância na América Latina e no Caribe. Ele destacou especialmente o problema de cobertura e qualidade nesta etapa educacional.

“Ainda temos muitas limitações nos níveis regional e nacional, especialmente muitos desafios nos quais podemos trabalhar. Precisamos estabelecer programas educacionais que sejam projetados, com objetivos claros e adequados à realidade da comunidade, à realidade do ambiente em que o menino e a menina estão se desenvolvendo”, afirmou.

Ele acrescentou que os programas para esta etapa educacional devem ter uma perspectiva de desenvolvimento integral das pessoas. “Quando falo sobre desenvolvimento integral, falo sobre o físico, o emocional, o cognitivo, em que toda a sociedade, todo o ambiente da criança deve ter uma corresponsabilidade”, explicou.

Ele também destacou como obstáculos a serem superados, a falta de investimento e cobertura na educação infantil. “A faixa etária com a menor cobertura educacional é a primeira infância”, disse ele.