Brasil: durante crise hídrica em São Paulo, escola pública paga mais do que clientes privados
4 de agosto de 2015
No Estado de São Paulo, shoppings, grande indústria e até faculdades privadas podem pagar R$ 4 por metro cúbico d’água; mesmo volume custa R$ 12 para rede pública de ensino
Fonte: Carta Escola | Por Cinthia Rodrigues
Em São Paulo, a água não tem o mesmo preço para todos. Por conta de contratos “vip” com a companhia de abastecimento – a Sabesp – alguns clientes, como bancos, montadoras, empresas de mídia, shoppings e até escolas particulares, pagam menos. Enquanto isso, a Secretaria Estadual de Educação, imersa em uma das maiores greves docentes da história, paga milhões à Sabesp – e não só pelo consumo. Por um decreto do governador Geraldo Alckmin (PSDB), o órgão precisou ampliar o Programa de Uso Racional da Água (Pura), que prevê contrato oneroso para compra de equipamentos que ajudem a economizar água. Em contrapartida, o valor pago é reduzido, mas as escolas continuam fora da lista vip.
A situação se torna mais grave diante da conjuntura: os professores da rede estadual fizeram greve por três meses, sem receber qualquer proposta de aumento salarial ou de investimento para, por exemplo, reduzir as turmas de mais de 50 alunos. O governo alegou falta de recursos. Ao mesmo tempo, o Estado paulista está à beira de uma crise hídrica, com o fantasma do racionamento rondando a população.
Apesar de o governo de São Paulo ser sócio majoritário da Sabesp, com 50,3% das ações, os órgãos públicos pagam pelo metro cúbico de água o mesmo valor cobrado de qualquer outro cliente comercial. O preço, fixado a partir de junho em 16,10 reais por metro cúbico (ou a cada mil litros de água), passa a ser 12,08 reais para quem adere ao Pura. O desconto, porém, é menor do que o oferecido a empresas com “contrato de demanda firme”, ou seja, aquelas que prometem um gasto mínimo elevado. Em troca, tais empresas podem pagar até um quarto do valor original, entre 4 e 10 reais por metro cúbico.
A Secretaria Estadual de Educação de São Paulo – que recebe mais de cinco milhões de pessoas por dia em seus prédios entre alunos, professores e funcionários – poderia facilmente prometer um gasto mínimo elevado, caso este fosse mesmo o critério para se enquadrar na “demanda firme”. Atualmente, o órgão gasta 150 milhões de reais por ano só com conta de água. O valor seria suficiente para elevar a folha de pagamento de todos os professores da rede estadual em 1,3% e é mais do que recebem, juntos, os programas de Tempo Integral (com orçamento de 111 milhões de reais para todo o ano de 2015) e Educação de Jovens e Adultos (outros 24 milhões de reais previstos para este ano).
“É uma política da Sabesp. Desconheço o motivo de não fazermos parte dos contratos de demanda firme”, afirma o diretor do Centro de Utilidade Pública da Secretaria Estadual de Educação, Gennaro Soria. Procurada pela reportagem de Carta Fundamental, a Sabesp enviou nota dizendo que os órgãos públicos com contrato pagam pelo metro quadrado 8,84 reais, mas as tarifas divulgadas inclusive no próprio site da empresa são outras. Segundo o diretor da Secretaria de Educação, metade da conta total de água anual é paga à Sabesp e o restante a outras empresas de abastecimento responsáveis pelas regiões em que as escolas do interior estão instaladas.
Gennaro Soria explica que a adesão ao Pura já significa alguma economia, em comparação a quando o órgão não tinha qualquer desconto ou equipamentos mais econômicos. O primeiro contrato da Secretaria de Educação com a Sabesp, após aderir ao Pura, ocorreu no período de 2008 a 2010. A pasta repassou 10,9 milhões de reais à empresa para que terceirizasse serviços de instalação de vasos, torneiras e outros equipamentos mais modernos em 345 escolas da região metropolitana.
Com isso, segundo Soria, a economia média por unidade atualizada foi de 25% e a conta d’água diminuiu em 17,8 milhões de reais por ano. Apesar de não ser um desconto tão grande quanto o recebido por empresas “vips” do contrato de demanda firme, ao menos o valor do investimento era recuperado em menos de um ano. Na segunda fase, iniciada em 2013, isso começou a mudar. O valor investido aumentou, mas o retorno em economia e número de escolas beneficiadas caiu. Dessa vez, a Secretaria de Educação pagará à Sabesp 15,5 milhões de reais, até 2016, para modernizar os equipamentos em 245 novas escolas e economizar apenas 10 milhões de reais por ano em conta de água.
O diretor justifica o contrato mais caro pela aquisição, além de privadas, de aparelhos digitais para o sistema de medição do consumo, tanto nas novas unidades quanto nas que fizeram parte da primeira fase. Com isto, os dados da conta ficarão disponíveis online para o servidor da Sabesp. “A vantagem para a secretaria é que antes levava meses para identificar um vazamento e fazer a manutenção, agora leva dias”, diz Soria. A vantagem para a Sabesp – além de receber dinheiro por esta instalação – é que o equipamento dispensa um funcionário que vá medir o relógio, como no sistema tradicional analógico.
Tem mais: em junho, a Secretaria assina um novo contrato com a empresa de água para cumprir o decreto 59.327, assinado por Alckmin em junho de 2013. Desta vez, mais 1.093 escolas serão incluídas no Pura e, de novo, a proporção entre pagamento e retorno em economia diminuiu. Serão pagos 62,8 milhões de reais até 2017 e a expectativa é que a conta de água seja reduzida em 22 milhões de reais por ano, por causa da economia e do desconto de 25% no preço do metro cúbico. É pouco, se comparado às empresas “vips” que chegam a pagar um terço do valor comum.
As regras para os descontos dados por meio dos contratos de “demanda firme” não são claras. As informações não estão no site da Sabesp e variam conforme o acordo com cada cliente. Os valores foram negados à imprensa desde o o auge da crise no final de 2014. Depois de meses de investigação e até processos judiciais, a Agência Pública conseguiu publicar, em maio, os 537 contratos firmados com preços a partir de 4 reais por metro cúbico.
A maioria dos contratos tem vigência anual. Entre os assinados mais recentemente – e, portanto, cujos preços estão em vigor – estão o prédio da Bolsa de Valores, que paga 10,32 por metro cúbico, o Condomínio Morumbi Corporate Tower, que paga 9,69 e a fábrica de alimentos Vigor, que tem o metro cúbico por 4,51.
Ainda falta água
O dinheiro investido pela Secretaria de Estado de Educação não impede que a crise hídrica cause problemas também nas escolas. O racionamento (cuja existência foi negada em diversos momentos pelo governador) foi uma das causas da atual greve na rede estadual, deflagrada em 13 de março, um mês antes da data-base para negociação salarial dos professores. A maioria das escolas tem caixas d’água proporcionais, mas os educadores relatam casos de funcionamento comprometido pela falta d´água. “No mês passado, a bomba da caixa quebrou e, como não vem água da rua, os alunos tiveram de ser dispensados”, comenta Heloísa Santos, professora de História da escola estadual Nanci Cristina do Espírito Santo, em Poá, na Grande São Paulo. “Não tinha água para beber nem para dar descarga”, completa a colega, Marta Helena, de Língua Portuguesa.
Altamir Borges Filho, professor de Filosofia, relata que, no começo do ano, portanto antes da melhora dos níveis dos reservatórios com as chuvas do fim do verão, a escola estadual Esmeralda Becker de Carvalho, em Carapicuíba, era abastecida com caminhão pipa. “Os alunos tinham que trazer água para beber de casa. Entre tantas coisas deprimentes, esta da água foi uma das piores que já vi”, diz.
Sem se identificar com medo de represálias, uma diretora de escola da Vila Alpina, extrema zona leste, afirma que falta água no bairro seis horas por dia e é comum que a escola sofra o impacto. “Nos adaptamos, estamos economizando e falta cada vez menos, mas é um stress grande, tudo contado. Quando falta, como voltará em algumas horas, não somos contemplados com caminhão-pipa”, afirma.
Diretor do Centro de Utilidade Pública da Secretaria Estadual de Educação, Soria confirma que nem sempre o caminhão-pipa solicitado é enviado. Outro contrato da Secretaria de Educação com a Sabesp prevê o atendimento com caminhão-pipa em até 12 horas (em vez das 48 horas de praxe) para escolas. No entanto, para obter o benefício, a escola precisa preencher formulários e a companhia de abastecimento envia técnicos para avaliar se não há outra solução. Desde que a política foi implantada, no início de 2015, houve 197 pedidos de 131 escolas, mas apenas 64 caminhões foram considerados necessários.
Para Soria, o número reduzido é um bom sinal. “Isso demonstra como, apesar de tudo que aparece na mídia, a situação não é tão ruim”, diz. Ele confia nos cursos educativos e nas medidas implantadas para ter cada vez menos ocorrências de falta de água. “Encontramos uma escola que tem uma nascente, por exemplo. Estamos viabilizando o uso. Trabalhamos com um cenário otimista”, diz.
A autora do Boletim da Falta d’Água e doutoranda em Psicologia Social pela Universidade de São Paulo, Camila Pavanelli de Lorenzi não vê motivo para otimismo. “Pelo contrário, este mês Santo André decretou que terá rodízio a partir de setembro e Campinas está estudando fazer o mesmo”, comenta. Todas as semanas, Camila reúne notícias sobre a crise hídrica e destrincha as informações, antes de divulgá-las nas redes sociais. O trabalho começou após perceber que a crise hídrica não estava sendo vista pela sociedade como crônica e grave. Apesar de todos os fatos, na opinião de Camila, ainda há quem pense dessa forma. “As pessoas compram e alimentam o discurso de que não falta água”, lamenta. No começo do ano, o Boletim registrou várias notícias de escolas públicas com falta de água. “Depois parou. Agora, no final de maio, houve algumas de escolas particulares sem água, inclusive uma na Mooca que precisou dispensar os alunos”, diz.
A Secretaria Municipal de Educação de São Paulo, responsável por atender 1 milhão de alunos, também não é tratada como “cliente vip”. Pior ainda, não tem desconto nenhum. O órgão já aderiu ao Programa de Uso Racional da Água para pagar menos e trocar os equipamentos. Mas, ao fim do contrato, voltou a desembolsar o preço da tarifa destinada aos clientes comuns. Até o mês passado, antes do aumento previsto em junho, o metro cúbico por diretoria de ensino, custava entre 13,41 e 13,97 reais, conforme o gasto – diferente dos “vips”, clientes comuns que gastam mais, pagam mais.
Para lidar com o racionamento, as unidades mudaram suas rotinas e houve ações de conscientização. Carolina Nogueira, diretora da escola municipal de educação infantil Clara Nunes, em Capela do Socorro, zona sul de São Paulo, vê a nova situação como permanente. “Lidamos com a falta de água como algo que veio para ficar. Independente das crises mais agudas, acabou a abundância”, diz.
Ela sabe que falta água no bairro porque uma das torneiras é ligada diretamente à rua, mas afirma que os pontos abastecidos pela caixa d’água não secam. Entre as mudanças de hábito, estão a troca da máquina de limpeza a vapor pela vassoura no pátio, a adoção de jarra de água nas salas para evitar desperdícios dos bebedouros e até o aproveitamento da água que cozinha os legumes para fazer arroz. “Fazemos um pouco de aperto, mas antes também havia desperdício. É uma questão de bom senso”, diz. Algo que parece faltar na hora de definir quem paga mais – ou menos – pela água no estado.