Escritora do e-book ‘’Educar para transformar o mundo – inovação e diferença para uma educação de todos e para todos’’, Sílvia Ester Orrú conversou com a CLADE sobre o tema.
Em entrevista, a professora destaca que uma educação transformadora deve inspirar e expirar a diferença e as liberdades de ser e estar no mundo. Além disso, deve inspirar com o mundo e com os outros como valores humanos fundamentais e inegociáveis. E, dentro disso, compreender a diferença como um atributo, uma qualidade própria da espécie humana.
“Uma educação preenchida de amorosidade e respeito a todas as pessoas, sem discriminação por raça, cor, etnia, crença, gênero, sexo, condição sócio-econômica ou singularidades que constituem o corpo físico ou psíquico das pessoas”, explica.
Brasil, Chile, Espanha, Itália e Portugal: um só compromisso
A brasileira conta que, como pesquisadora na área dos direitos humanos e da educação inclusiva, sempre se muniu de leituras do contexto nacional e internacional sobre a temática. Isso inclui metodologias inovadoras sobre uma aprendizagem mais prazerosa e focadas no princípio democrático. Foi então que decidiu conversar com os colegas dos demais países e propor a publicação deste material.
Na época, recorda, ela contava com recursos do CNPq, ainda concedido no governo Dilma Rousseff. Assim, as temáticas dos capítulos do livro mencionado acompanham seus estudos e pesquisas. Orientações de trabalhos acadêmicos na graduação, no mestrado e no doutorado também fazem parte. Colegas de Sílvia, também autores de capítulos do livro, são grandes e renomados estudiosos sobre o assunto.
“O que nos une e nos move é o compromisso e a inquietude de querermos transformar o mundo pela educação libertadora, tal como nos dizia o querido Paulo Freire, patrono da educação brasileira”, comenta.
Para Sílvia, é impossível oferecer uma educação inclusiva, libertária e democrática onde o aprendiz não tem liberdade de se expressar e de focar aquilo que mais lhe interessa.
A educação transformadora deve ser essencialmente inclusiva
“A educação que transforma o mundo em um lugar melhor para se viver se constitui na coexistência da diferença e da liberdade como princípios alicerçantes de todo seu projeto de ação pedagógica”, diz Sílvia.
Para ela, sem liberdade e sem respeito às diferenças, não há inclusão na escola, na universidade, muito menos na sociedade. Nossa sociedade tem como sua fundamental, o sistema do patriarcado e do capitalismo. Ambos aniquilam a legítima identidade, sua multiplicidade e pluralidade. “Eles destroçam as pessoas que não se encaixam no padrão social mais cultuado. Ser branco, macho, hétero, adulto é tido como se fosse o normal”, enfatiza.
Esses sistemas aumentam as desigualdades sociais e alargam o abismo do distanciamento social. Aqueles que não dão conta de superar todas as barreiras impostas são empurrados à margem. Sílvia Orrú analisa que essas pessoas se tornam indesejáveis e invisíveis da sociedade.
“Somente a íntima relação entre diferença e liberdade de ser e estar no mundo, entre democracia e inclusão, pode, pela educação como ação libertária, desconstruir e destruir essa cultura terrível de oprimir e excluir as pessoas por suas diferenças. E essa transformação social vem e sempre virá pela educação das crianças. Só assim poderão ser adultos melhores do que foram seus antepassados. O porvir no agora e no amanhã, tem que ser melhor!”, destaca.
Educar para transformar o mundo: o acolhimento da diversidade nas escolas
A professora pontua que não basta apenas o discurso de que precisamos respeitar todas as pessoas. Nas famílias, nas escolas, nas universidades, nas igrejas, nos meios de comunicação, nós precisamos viver o respeito ao outro.
Por isso, explica, o acolhimento à diversidade e à diferença permite que nós aprendamos a conviver com as singularidades, pluralidades e multiplicidades de cada um. Crianças educadas para respeitar e aceitar as diferenças humanas não se veem na posição de tolerar a diferença, como se fosse algo decidido por elas, desdobra a autora. “Elas entendem que não é o outro que é diferente de si, mas todos somos diferentes uns dos outros.”
Sílvia Orrú também destaca o desafio de formar docentes de modo a impulsionar e preparar essas e esses profissionais para a oferta de uma educação inclusiva e transformadora, numa sociedade tão excludente.
É preciso repensar os métodos conservadores e tradicionais de ensino
“Nós, professores de universidades, somos nascidos no século XX e também formados e treinados com estes métodos. Como promovermos uma educação transformadora se ainda nos apegamos aos mesmos métodos?”, argumenta. Fundamentos como a memorização, repetição e fixação de conteúdos fragmentados, ficam sem sentido para os aprendizes da educação básica.
Muitos professores que trabalham em cursos de licenciatura permanecem perpetuando esse método. “O futuro professor é moldado, da escola à graduação, desse jeito. Quando chega na escola para lecionar, mesmo tendo tido disciplinas sobre educação inclusiva e direitos humanos na faculdade, se perde. Não sabe como fazer para mudar esse sistema que é essencialmente excludente”, explica.
Por isso ela acredita que submeter as crianças ao que chamou de “’brutal roubo de suas infâncias” pelas horas de depósito de conteúdos no banco da escola é seguir na contramão. “Elas são submetidas a decorebas em casa para dar conta dos processos inflexíveis de avaliação onde o êxtase é o alto rendimento ”, finaliza.
Para a formação de profissionais com uma base inclusiva, analisa, é preciso que as universidades compreendam também sua necessidade de mudar. “É preciso partir da diferença e rever métodos de compartilhar saberes. Modos de avaliar o processo de aprendizagem de seus alunos que serão os futuros professores precisam mudar. Essas liberdades de ser e estar no mundo como valores humanos sustentam essa profissionalização docente que transformará nossa sociedade em um lugar melhor para todos.”
As afetividades e a arte e a cultura a partir da educação e na educação
A nossa cultura não deve se resumir a formar crianças para serem profissionais bem sucedidas/os no futuro. Formá-las para ‘’se dar bem na vida’’ e ignorar os sem-número de pessoas que não têm acesso à comida, à água, à moradia, a salário decente, à vida digna.
Uma cultura controladora e perpetuadora de horrores contra a humanidade precisa ser desconstruída. Ao mesmo tempo devemos construir uma cultura intercultural. A autora reforça que a diferença deve ser a base para uma outra vida em sociedade.
Para isso, a afetividade e a arte são plenamente necessárias, sendo forças motrizes para alimentar estes processos.
Para a professora, é urgente e emergente educar a partir da arte e com afeto amoroso que acolha todos os aprendizes a partir de suas próprias realidades e respeitando suas diferenças, sua cultura. “Oportunizar o contato com a arte e fazer arte, reinventar o novo a partir de sua realidade, de sua cultura tecida desde o nascimento, é experimentá-la inundada pelos afetos que nos constituem, que nos movem e por tantos outros afetos daqueles com quem convivemos, que nos afetam”, argumenta.
Educar na interculturalidade, a partir da própria realidade vivida, conhecendo e fazendo arte, é afetar e ser afetado o tempo todo. Ela destaca que reconhecer a arte que nos constitui e que constituímos também exige de nós o respeito às diferentes culturas. Além do entendimento sobre os processos de luta, resistência e reexistência às muitas tentativas de silenciamento, controle e supressão das diferentes vozes sociais pelos ícones e defensores de práticas, perversamente, fascistas em nossa contemporaneidade.
“Assembleias como método pedagógico: educar para viver a democracia e transformar o mundo”
O artigo de Sílvia no livro destaca a importância de educar para a democracia e para a cidadania, e como oferecer essa formação no sistema educacional de hoje. Ela conta que sua própria formação se deu nessa sociedade e educação embasadas nos princípios do patriarcado e do capitalismo.
“Como as mulheres de modo geral, também fui educada para obedecer às normas sociais que nos educam para sermos boas donas de casas, submissas aos maridos, para que ouçamos primeiro os homens, para que compitamos entre nós, para que nos conformemos com emprego e salário miúdo, para que ocultemos o que nos dá prazer, para que vejamos nossos corpos como promotor de pecados, para aguentar as dores de parto sem reclamar, para que trabalhemos sem pensar nos porquês das crises. Para que, entre o menos mal e o pior, aceitemos o mal menor. Pra que silenciem para evitar conflitos e aí vai… É muito difícil sair desse ciclo de ordenamentos e destinos sociais depois de adultas”, conta.
“Educar na e para a cidadania é promover a educação como ação libertadora. As assembleias como método pedagógico possibilitam experimentar e ser preparado para viver a cidadania dentro dos valores da democracia. O seu sentido não diz respeito à maioria decidir por algo que tire da minoria a oportunidade de uma vida digna”, defende.
Para Sílvia, se as crianças tiverem a oportunidade de protagonizar suas próprias histórias e ressignificarem os significados já postos na sociedade, suas vidas podem ter rumos diferentes. “Elas lutarão por isso”, diz. Para ela, deve-se educá-los para se tornarem mulheres e homens livres e libertários. Assim, conhecerão seus opressores e darão os braços para que o direito de ser quem são não sejam ultrajados por ninguém.
Sobre o contexto da pandemia COVID-19
Sílvia destaca a percepção de que somos minúsculas/os diante da imensidão da vida. “A natureza segue seu curso enquanto vemos nossa espécie sendo enterrada aos milhares, em questão de dias, pela ação de um microorganismo. O que fica evidente não é o horror do vírus, mas o terror que é o patriarcalismo e a selvageria do capitalismo que precede à barbárie”, aponta, fazendo menção às milhares de meninas e mulheres que estão sofrendo ainda mais violência doméstica e sexual por terem que viver enclausuradas, convivendo com seus agressores.
“Ao mesmo tempo, também nos deparamos com a coragem e a solidariedade de outros milhares na luta pela sobrevivência frente a essa situação que nós mesmos, humanos gananciosos e insatisfeitos, nos colocamos. A Terra é nossa Casa Comum, como nos diz Leonardo Boff”, acrescenta.
Para a professora, o grande questionamento é: que vida na Terra e legado social queremos deixar para as próximas gerações?
Nesse sentido, Sílvia insiste: só uma educação amorosa, generosa, solidária, respeitadora das diferenças, pode nos libertar de nossa compulsão e ganância de querer ter mais, para nos abrigarmos nas asas da liberdade de sermos mais humanos. “É essa a educação que sempre transformará o mundo em um lugar melhor para todas as pessoas viverem”, finaliza.