Análise: Desafiando a tendência de privatização da educação

A educação é uma das formas mais poderosas de combater desigualdades, mas também pode enraizá-las, quando, para ter acesso, as pessoas precisam pagar por ela; leia a análise de David Archer, coordenador do Programa de Desenvolvimento da ActionAid
Por David Archer | Fonte: Le Monde Diplomatique Brasil

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Foto: Le Monde Diplomatique Brasil

A educação é uma das formas mais poderosas de combater desigualdades, mas também pode enraizá-las, quando, para ter acesso, as pessoas precisam pagar por ela. Os sistemas educacionais em todo o mundo são extremamente diversos, mas temos observado um envolvimento crescente do setor privado nos últimos anos. O ideal de gerar igualdade de oportunidades para todas as crianças, independentemente de suas origens, está se perdendo, uma vez que o dinheiro tem se tornado o passaporte para uma melhor formação.
A maioria dos países ricos sempre teve escolas privadas de elite, com as melhores delas cobrando preços exorbitantes que permitem acesso apenas ao 1% mais rico da sociedade. Sempre houve também instituições de ensino destinadas a famílias menos abastadas, mas que ainda assim podem pagar por uma educação exclusiva. Ir para essas instituições é uma garantia, em maior ou menor medida, de acesso às melhores universidades e, consequentemente, às principais funções na vida privada e pública. Já nos países emergentes, assistimos, mais recentemente, à propagação de escolas privadas para as classes médias.
Mas agora há uma propagação de cadeias lucrativas de escolas privadas de baixo custo em muitos países do chamado Terceiro Mundo, como a Bridge Schools International, no Quênia e em Uganda, ou a Omega Schools, em Gana. Esses empreendimentos estão crescendo muito, baseados num massivo financiamento internacional. A Pearson PLC, maior companhia multinacional de educação do mundo, está apoiando essas empresas através do seu chamado “Affordable Learning Fund” (Fundo de Aprendizagem Acessível, em tradução livre), mas investidores de Hedge Fund, o Banco Mundial, o Departamento para Desenvolvimento Internacional do governo britânico (DFID), e bilionários, como Mark Zuckerberg, do Facebook, também estão envolvidos.
Essas iniciativas de escolas privadas de baixo custo costumam oferecer uma educação de baixa qualidade, além de explorar as aspirações de pessoas vivendo em situação de pobreza. É claro que elas não chegam aos mais pobres, que não têm condições de pagar taxa alguma, e não estendem o acesso à educação, já que quase todos os estudantes que se matriculam são oriundos de escolas públicas. Essas empresas afirmam garantir melhores resultados para os alunos, mas quando são devidamente avaliadas com parâmetros para o status socioeconômico das crianças, muitas vezes, produzem resultados de baixa qualidade.
Para frequentar uma escola do grupo Omega, em Gana, os estudantes pagam apenas 60 centavos de dólar por dia. Com 500 crianças em cada escola e um professor inexperiente recebendo baixos salários, é possível extrair lucro. Esta é uma perspectiva muito preocupante, pois mostra a priorização do ganho econômico em detrimento da educação.
Como é possível que isso aconteça? A resposta é clara. Os sistemas de educação pública se expandiram rapidamente nos últimos anos em muitos países. Há menos 84 milhões de crianças fora da escola do que havia em 2000, de acordo com o relatório de monitoramento 2015 do movimento Education for All. As matrículas aumentaram quando governos que anteriormente cobravam taxas pela escola primária – sob as políticas de ajuste estrutural do Banco Mundial – aboliram a cobrança dez anos atrás. Em locais como o Quênia e a Tanzânia, milhões de crianças se matricularam e as turmas cresceram rapidamente – muitas vezes, atingindo a proporção de mais de cem crianças por professor. A solução óbvia seria contratar mais professores, mas como resultado das políticas macroeconômicas do Fundo Monetário Internacional e das imposições de austeridade nas contas públicas associadas a seus empréstimos, muitos países deixaram de recrutar mais professores e a qualidade das escolas públicas caiu, levando parte da população que podia pagar a buscar alternativas.
E qual deveria ser a resposta hoje? Claro que é preciso discutir investimentos adequados nos sistemas de educação públicos. Muitos países ainda ficam aquém das recomendações de destinar 6% do PIB ou 20% dos orçamentos nacionais para a educação. Mas mesmo onde esses parâmetros são respeitados, os valores podem ser insuficientes, se as receitas totais disponíveis para os governos forem baixas. Por isso, ativistas internacionais têm reivindicado a expansão de bases tributárias domésticas de forma progressiva, para que quem tem mais pague mais, e assim seja possível construir um sistema de gastos progressivos das receitas fiscais.
Um dos fatos mais surpreendentes da questão tributária é que algumas das maiores empresas multinacionais quase não pagam impostos nos países de onde extraem seus lucros. Mais de U$S 138 bilhões são desperdiçados todos os anos pelos países em desenvolvimento, com incentivos e isenções fiscais desnecessárias. Mais ainda é perdido através de esquemas de evasão fiscal. Uma educação pública universal de qualidade poderia ser facilmente financiada se houvesse ações sérias tomadas a favor da justiça fiscal. Para isso, é fundamental a criação de um organismo intergovernamental da ONU sobre impostos, com poderes e recursos suficientes. Hoje, as regras fiscais globais são definidas pelo clube dos países ricos que compõem a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico.
Também precisamos de ações coordenadas para contestar e regulamentar o ensino privado. O relator especial das Nações Unidas sobre o direito à educação escreveu recentemente dois relatórios questionando a progressiva privatização e apelando para uma maior regulamentação. Além disso, há um movimento da sociedade civil global emergindo para protestar contra esta tendência. Quando o Banco Africano de Desenvolvimento acenou com a promoção da expansão da oferta de educação privada, foi firmemente condenado por mais de 50 organizações de todo o continente. Quando o presidente do Banco Mundial, Jim Kim, elogiou recentemente a Bridge Schools no Quênia, mais de cem organizações se reuniram para contestar sua hipocrisia.
Neste momento de aumento da desigualdade, precisamos reforçar essas iniciativas. Precisamos construir sistemas de educação equitativos para obter resultados equitativos, e precisamos colocar a educação à frente do lucro.
Sobre o autor: David Archer tem 25 anos de experiência em abordagens baseadas em direitos à educação e construção de coalizões da sociedade civil sobre o tema em África, Ásia e América Latina. É cofundador e membro do Conselho da Campanha Global pela Educação e tem assento no Conselho da Parceria Global pela Educação.

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