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“Faltam indicações específicas sobre como alcançar o direito humano à educação na primeira infância”

15 de maio de 2020

Por: Thais Iervolino

Em painel do CIES 2020, especialistas alertaram sobre a tendência a priorizar uma narrativa instrumental e economicista na educação para a primeira infância, a falta de cobertura nesta etapa, especialmente para crianças de famílias com baixos rendimentos, e a ausência de coordenação intersetorial das políticas públicas para crianças pequenas na região.

“O Direito à Educação e ao Cuidado na Primeira Infância na América Latina e no Caribe diante dos desafios sociais e ambientais no mundo” foi o título de um painel virtual realizado pela Campanha Latino-Americana pelo Direito à Educação (CLADE) em parceria com a Organização Mundial para a Educação Pré-Escolar (OMEP) e a Fundação Educação e Cooperação EDUCO, no âmbito da 64ª Conferência Anual da Sociedade para a Educação Comparativa e Internacional (CIES).

Com o objetivo de analisar a situação do direito à educação e ao cuidado na primeira infância na América Latina e no Caribe, o evento foi realizado o dia 25 de março, e contou com a participação de: Peter Moss, professor do Instituto de Educação da Universidade de Londres e especialista com reconhecida trajetória no campo da educação inicial; Mercedes Mayol Lassalle, presidente mundial da OMEP; Madeleine Zúñiga, coordenadora da Campanha Peruana pelo Direito à Educação (CPDE); Vernor Muñoz, diretor de Políticas e Incidência da Campanha Mundial pela Educação (CME); e Camilla Croso, coordenadora geral da CLADE, que moderou o diálogo. 

Leia abaixo as reflexões e abordagens que se destacaram no painel:

Outra política para o Cuidado e a Educação na Primeira Infância é possível

Segundo Peter Moss, a hegemonia global do neoliberalismo e o fato de a atenção, o cuidado e a educação na primeira infância (AEPI) terem se tornado uma prioridade política no âmbito mundial resultaram em que essa etapa de vida tem sido considerada como um meio eficiente de maximizar o “capital humano”.

“Isso pode se ver em particular em uma narrativa dominante que impulsionou a formulação de políticas de AEPI em âmbito nacional e mundial, a partir de uma narrativa que é instrumental e economicista na racionalidade e adota a atividade técnica como prioritária: é uma narrativa que se denominou a história da qualidade e dos altos rendimentos'”, enfatizou. “Assim, segundo esta história, a AEPI garantirá o sucesso individual e nacional em um mercado global cada vez mais competitivo, e todas as pessoas viveram felizes para sempre”, acrescentou.

“Precisamos ser capazes de entender e nos relacionar com as ideias transformadoras que surgem de outros campos, incluindo a economia, a democracia e o meio ambiente”

De acordo com o pesquisador, essa perspectiva instrumental e economicista está presente não só na educação e no cuidado na primeira infância, mas atravessa todo o campo educativo. “Também devemos levar em conta a existência de um modelo de desenvolvimento global que busca reduzir diversos fenômenos sociais e culturais, tais como a educação, a questões de eficiência mercantil e crescimento econômico”, afirmou.

Acrescentou que a construção de outra perspectiva de educação e cuidado na primeira infância, que não seja orientada pela busca por altos rendimentos, deve basear-se em decisões políticas democráticas para a educação, em conjunto com outras políticas. “O campo deve estar ligado a um processo mais amplo, envolvendo a educação como um todo e a construção do futuro sobre a democracia, a justiça social, a solidariedade e a sustentabilidade”, declarou.

Afirmou também que profissionais e pensadoras/es do campo da primeira infância devem ter a capacidade de entender e se relacionar com as idéias transformadoras que surgem de outros campos, além da educação, incluindo a economia, a democracia e o meio ambiente. “Enquanto isso, aqueles que trabalham nesses temas amplos devem estar conscientes das potenciais contribuições que o cuidado e a educação na primeira infância, e toda a educação, podem oferecer”.


Privilégio versus direito humano

“Apesar da poderosa definição de crianças como sujeitos de direitos consagrada pela Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança da ONU e de todas as valiosas diretrizes sobre o direito à educação, existe ainda uma falta de indicações específicas sobre como alcançar o direito humano à educação na primeira infância em nossa região”, afirmou Mercedes Mayol Lassalle, em sua apresentação.

“Apesar da expansão da matrícula, a desigualdade em matéria de acesso persiste, porque lares com alto nível socioeconômico estão 30 pontos percentuais acima dos valores de acesso das crianças de cinco anos de idade dos lares mais pobres”

Para a presidenta da OMEP, existem desafios importantes em relação à implementação efetiva de abordagens integrais e intersetoriais dos direitos das crianças na América Latina e no Caribe. A desigualdade no acesso à educação é outro desafio na região, que se confirma, por exemplo, com a enorme brecha entre o acesso de crianças com mais de três anos e o acesso de crianças desde o nascimento até os três anos, sendo que para essa última faixa etária a cobertura por parte do Estado é muito restrita, fazendo com que as famílias tenham de pagar por estes serviços.

“Apesar da expansão da matrícula, a desigualdade em matéria de acesso persiste, porque lares com alto nível socioeconômico estão 30 pontos percentuais acima dos valores de acesso das crianças de cinco anos de idade dos lares mais pobres”, afirmou.

Durante sua apresentação, Mercedes analisou as conclusões da pesquisa da CLADE “O direito à educação e ao cuidado na primeira infância: perspectivas da América Latina e do Caribe”

Outro aspecto importante que destacou é que a oferta de uma educação obrigatória e gratuita na primeira infância é ainda limitada na região. “Os acordos internacionais, particularmente a Agenda de Educação 2030, estabelecem a obrigatoriedade pelo menos no ano anterior à entrada no ensino fundamental e, em muitos países, essa foi ampliada para dois ou três anos antes da escola primária”, explicou Mercedes Lassalle.

E concluiu que, na região, infelizmente, “a AEPI é um privilégio para algumas crianças e não um direito humano para todas e todos, particularmente desde o nascimento até os três anos”.


Desafios do cuidado e da educação na primeira infância no Peru

Em sua apresentação, Madeleine Zúñiga traçou um percurso histórico sobre as políticas públicas para o cuidado e a educação na primeira infância no Peru, desde a experiência dos centros “Wawa Wasi” (Casa das Crianças, em quechua), ao longo dos últimos anos da década de 1960 na região Sul dos Andes peruanos, passando pela promulgação da Lei Geral de Educação Nº 19326, em 1972, até chegar aos desafios atuais.

“A diversidade não deveria ser o problema, mas é a fonte de grandes desigualdades sociais, que são o resultado da vergonhosa discriminação ainda enraizada em nossa sociedade”

Para a coordenadora da Campanha Peruana, o primeiro e talvez mais desafiador dos problemas atuais é a fragmentação da primeira infância por faixa etária, já que a responsabilidade de políticas destinadas à primeira infância está dividida em três Ministérios no país: Ministério do Desenvolvimento e da Inclusão Social (MIDIS), Ministério da Educação (MINEDU) e Ministério das Mulheres e da População Vulnerável (MIMPV), de acordo com as diferentes idades e demandas sociais das crianças no país.

A diversidade complexa da população em termos de níveis socioeconómicos, localização geográfica, diversidade cultural e etnolinguística, bem como a inclusão e a equidade, representa outro desafio permanente. “A diversidade não deveria ser o problema, mas é a fonte de grandes desigualdades sociais, que são o resultado da vergonhosa discriminação ainda enraizada em nossa sociedade. Desigualdades são fáceis de identificar no acesso a serviços e também na qualidade dos serviços e nos levam a afirmar que a educação continua sendo um privilégio mais que um direito humano universal”, afirmou.

A educadora e ativista também enfatizou a necessidade de melhorar a qualidade de todos os programas públicos de AEPI e Educação Inicial, bem como de assegurar dados e avaliação sobre a qualidade e a pertinência dessas políticas, juntamente com uma formação docente adequada e contextualizada para esta fase de vida.

“Para alcançarem um desempenho ótimo é fundamental a formação inicial de docentes sob uma abordagem de direitos. A primeira infância merece receber atenção de profissionais cujo desempenho esteja fundamentado nos ricos e significativos artigos da Convenção sobre os Direitos da Criança. (…) A formação oferecerá a docentes as competências para fazer da experiência escolar uma experiência de democracia, solidariedade e de aprendizagem para viver com a diversidade”, destacou.


Sistemas educativos que não correspondem às realidades

Ao final do evento, Vernor Muñoz dialogou com as observações e as análises das e dos painelistas. Segundo o diretor de Políticas e Incidência da CME, a visão utilitarista da educação na primeira infância e da educação de maneira geral tem sido amplamente criticada por diversos organismos e mecanismos de direitos humanos.

“Foi Katarina Tomasevski quem chamou a atenção, há quase 20 anos, sobre como alguns economistas definem a educação como se fosse uma produção do capital humano e classificam todas as dimensões dos direitos humanos como externalidades. Hoje, 20 anos depois, ainda vemos como o Banco Mundial e muitas agências de desenvolvimento ainda consideram as pessoas como capital humano em vez de sujeitos de direitos”, disse Muñoz.

O interesse superior da criança está bem definido nos instrumentos internacionais de direitos humanos, mas em matéria de aplicação prática, isso sempre se coloca abaixo da interpretação de quem tem o poder de decidir

Para o ativista e ex-relator especial sobre o direito à educação da ONU, a abordagem utilitarista e autoritária da educação também revela que os sistemas educativos atuais não correspondem às realidades das pessoas, mesmo no caso das poucas crianças pequenas que conseguem ingressar no sistema educativo. “O interesse superior das crianças está bem definido nos instrumentos internacionais de direitos humanos, mas em matéria de aplicação prática, isso sempre se coloca abaixo da interpretação de quem tem o poder de decidir. Então, de novo, sob uma visão restritiva e utilitária, o interesse superior da criança costuma ser visto como a capacidade potencial de as crianças se tornarem boas consumidoras”, concluiu.


O painel foi transmitido em inglês, mas está disponível com legendas em português e espanhol abaixo.

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Acesse aqui o diálogo com legendas em créole haitiano